O contrato de concessão é um símbolo pétreo e não deve mudar por causa dos Carros Elétricos.

Se algo precisa ser alterado, que seja feito na “Convenção de Marca”

capa artigo julho 2022

Com a chegada dos carros elétricos, as montadoras de veículos têm uma grande oportunidade para aumentarem as receitas e principalmente, os resultados na última linha do P&L. A mudança do modelo de negócios, no mundo, cria um novo sistema composto pela fabricante e pela jornada do veículo. Mas, e a rede de concessionárias no Brasil, como ficará nessa história?

Antes de falar sobre a rede no Brasil, é preciso entender a nova estratégia de rentabilidade das fabricantes, com a venda dos carros elétricos.

Preço de venda sem flutuações

Vendendo direto para o cliente, seja por meio de um agente interveniente (com faturamento direto) ou recebendo diretamente o pedido do varejo, a montadora poderá evitar a flutuação de preços e garantir o mais elevado nível de receita. De certa forma, a mensagem é: “o preço é único e não há descontos sazonais”.

Esse sistema é o sonho de todo CFO, mas no Brasil, além de esbarrar em questões legais, tributárias e regionais, terá que vencer as barreiras culturais da negociação, do trade-in e dos sistemas paralelos de financiamento. São componentes de negociação muito característicos, que dependem das redes de concessionárias e do relacionamento de confiança entre o cliente e o próprio concessionário (coisa muito comum no interior e fora dos grandes centros).

Novos negócios agregados à venda do carro novo

A superconectividade dos carros elétricos permitirá um controle total da jornada do veículo, seja com o primeiro dono ou com os próximos proprietários do mesmo veículo. Vendas de softwares específicos, serviços online, assinaturas, atualizações de produto, gestão das baterias e assistência técnica nas nuvens, trarão novas receitas para as montadoras. Assim, as fabricantes “abocanharão” boa parte da geração de receitas e negócios que hoje estão a cargo das concessionárias e do aftermarket, principalmente quando o veículo muda de dono ou deixa o período de garantia. Com os carros elétricos, a venda de serviços atrelados à garantia estendida (de certa forma obrigatória) trará um novo filão de receitas e lucro.

A rede de concessionárias existentes e a nomeação dos agentes

Há vários cenários para a formação da nova cadeia de distribuição, tomando por base o que as montadoras anunciaram em seus planos para Europa e EUA, mas no Brasil há três situações, dependendo da autorização e concordância das associações de concessionárias existentes:

  1. A montadora transformará as concessionárias em agentes (muito difícil).
  2. A montadora manterá as concessionárias e nomeará novos agentes (modelo misto de distribuição).
  3. A montadora manterá a rede de concessionárias e dividirá com ela, os ganhos do novo modelo de negócios (recomendado e menos conflituoso).

Costumo fazer a observação que as montadoras não têm vocação para o varejo; isso é tarefa das concessionárias. Na grande maioria das vezes em que as montadoras partiram para o varejo, salvo raras exceções, o resultado foi ruim.

O que dizem a Lei e a PCCE

A Lei 6.729/79, parcialmente alterada pela Lei 8.132/90, detalhada em sua operação pela Primeira Convenção das Categorias Econômicas de 1983 (PCCE), esta última celebrada em conjunto pela Anfavea e Abrave, é a carta magna que regula a relação entre a montadora e suas concessionárias. Sobre a nomeação de distribuidores ou novos concessionários para novos produtos a serem lançados pela fabricante, a Lei é muito clara e diz o seguinte (aqui transcrito sem juridiquês):

Considera-se distribuidor, a empresa comercial pertencente à respectiva categoria econômica, que realiza a comercialização de veículos automotores, implementos e componentes novos, presta assistência técnica a esses produtos e exerce outras funções pertinentes à atividade;

Para os fins desta Lei, intitula-se também o produtor (montadora) de concedente e o distribuidor de concessionário;

A concedente poderá contratar, com empresa reparadora de veículos ou vendedora de componentes, a prestação de serviços de assistência ou a comercialização daqueles, exceto a distribuição de veículos novos, dando-lhe a denominação de serviço autorizado;

Constitui objeto de concessão, a comercialização de veículos automotores, implementos e componentes fabricados ou fornecidos pelo produtor (concedente), a prestação de assistência técnica a esses produtos, inclusive quanto ao seu atendimento ou revisão;

A concessão poderá, em cada caso, ser estabelecida para uma ou mais classes de veículos automotores e vedar a comercialização de veículos automotores novos fabricados ou fornecidos por outro produtor;

Quanto aos novos produtos lançados pela concedente (montadora), se forem da mesma classe daqueles compreendidos na concessão, ficarão nesta incluídos automaticamente e se forem de classe diversa, o concessionário terá preferência em comercializá-los, se atender às condições prescritas pela concedente para esse fim;

É facultado ao concessionário participar das modalidades auxiliares de venda que a concedente promover ou adotar, tais como consórcios, sorteios, arrendamentos mercantis e planos de financiamento;

Constitui direito do concessionário também a comercialização de mercadorias de qualquer natureza que se destinem a veículo automotor, implemento ou à atividade da concessão;

A nova contratação (nomeação) não poderá se estabelecer em condições que, de algum modo, prejudiquem os concessionários da marca;

Serão celebradas as convenções das categorias econômicas para explicitar princípios e normas de interesse dos produtores (montadoras) e distribuidores de veículos automotores (concessionárias), bem como normas e procedimentos relativos a inclusão, na concessão, de produtos lançados na sua vigência e modalidades auxiliares de venda, a comercialização de outros bens e a prestação de outros serviços; novas concessões e condições de mercado para sua contratação ou extinção de concessão existente;

Ficam constituídas onze classes de veículos automotores e composta cada uma delas dos seguintes veículos: de passageiros de qualquer natureza, de uso misto de qualquer peso e de carga até três mil quilos de peso bruto total admissível, de carga acima de três mil quilos de peso bruto total admissível e até dez mil quilos de capacidade máxima de tração, de carga acima de dez mil quilos e até trinta mil quilos de capacidade máxima de tração, de carga acima de trinta mil quilos…etc., de transporte coletivo de passageiros, de qualquer peso; tratores agrícolas, capazes também de servir a outros fins… etc..

Os veículos automotores serão diferenciados em convenção de marca, através de modelos, tipos e finalidade, devendo ser adotados em conjunto ou isoladamente, além de outros, os critérios de comprimento; potência do motor; cilindrada do motor; tipo de combustível utilizado…

Nota do autor:  Combustível é toda substância que reage e libera energia e calor, de forma utilizável, inclusive em modo mecânico e pode ser obtido de fontes não renováveis ou renováveis. A eletricidade é combustível análogo, assim como hidrogênio, gás natural, biogás, etanol, gasolina, querosene, óleo etc.

Os veículos elétricos, por analogia e inexistência de critérios específicos que os excluam, explicitamente, das classes de veículos automotores inerentes à concessão, fazem parte da Lei em toda sua finalidade e, portanto, as montadoras só poderão nomear agentes independentes para venda dos carros elétricos, se a associação de concessionárias da marca assim o permitir.

As associações de marca terão papel decisivo no novo modelo de negócios

É recomendável que as montadoras e as concessionárias, por meio de suas associações, preservem o modelo de relacionamento e três fundamentos básicos: técnico, político/diplomático e legal. Inclui-se, aqui, o respeito mútuo entre as partes e a construção de agendas positivas.

A mudança do modelo de negócios no Brasil, de concessionárias para agências, é inviável, ilegal e enfrentaria impedimentos.

A implementação das agências, conforme já anunciado para outros países, em substituição ou complemento às redes de concessionárias, não deve ocorrer para o caso de marcas e redes de concessionárias já estabelecidas no Brasil, principalmente porque as concessionárias continuarão existindo sob o regulamento da Lei Ferrari e da PCCE. Caso as montadoras nomeiem agentes, isso se daria sob as regras análogas à Lei 4.886/65 e aos artigos do Capítulo XII do Código Civil (Lei 10.406/2002, artigos 710 ao 721). Tal cenário só seria possível com a aprovação das associações.

A Lei 4.886/65 regulamentou a atividade do representante comercial e ganhou forma de “agência” e distribuição no Código Civil de 2002. Nesse caso, o agente faz a intermediação da venda e ganha comissão/remuneração. Já a Lei 6.729/79 (Lei Ferrari), regulamenta a concessão e possui caráter de legislação especial.

Mudar a Lei e os contratos de concessão é um campo minado para o setor automotivo e perigoso para as concessionárias. Tenho alertado, há anos, que a Lei Ferrari é muito boa e deve ser preservada. Se for respeitada e bem gerida, consiste em uma excelente âncora para os dois lados.

Contrato de concessão é um símbolo pétreo no setor automotivo

  • O contrato não se muda, salvo motivos de força maior (aqui entendido como mudança na Lei). Se algo precisa ser mudado, que seja nas Convenções de Marca.

São tantas as novidades para o setor que, em uma análise superficial, eu diria que a regulamentação das relações entre fabricantes e redes de concessionárias, vigente há mais de quatro décadas, não foi feita para conviver com o novo ambiente tecnológico dos negócios no setor automotivo, se, não houvesse a PCCE. É importante que as redes de concessionárias e as montadoras redesenhem as suas convenções de marca.

É preciso cuidado, responsabilidade e transparência ao abordar esse tema. Minha recomendação é que qualquer mudança seja realizada em convenção de marca, negociada e acordada entre as partes, e não no contrato de concessão. Esse tema deve ser prioridade estratégica das marcas e de suas associações.

Em mais de trinta anos atuei diretamente na gestão de redes de concessionárias de carros, caminhões, ônibus, máquinas e conheço bem os anseios e angústias dos dois lados, fabricantes e distribuidores. É muito saudável quando as partes se toleram em momentos de turbulência e se amam na bonança, afinal, ao assinarem o contrato de concessão celebraram um casamento, com ônus e bônus.

Orlando Merluzzi (*)


(*) Sócio da MA8 Consulting, conselheiro independente, palestrante, consultor e especialista em gestão, governança e planejamento estratégico, atua no setor automotivo há 37 anos, dos quais, 30 anos dedicados ao relacionamento entre montadoras, associações e redes de concessionárias.


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